Geraldo: "Há questões estruturais que desafiam o nosso Projeto"

Esta entrevista foi realizada no âmbito do Projeto Reagir às Mudanças Climáticas: Jovens da Beira na Reflexão e na Ação para o Bem Comum, a propósito da visita de dois membros do CISA – Centro de Investigação Santo Agostinho da UCM – Universidade Católica de Moçambique, a Portugal.

Durante duas semanas, foi possível aos vários intervenientes do Projeto reunir e fazer um ponto de situação de dois anos de implementação de Reagir às mudanças Climáticas na região da Beira. Através de uma abordagem de Aprendizagem-Serviço, implementada na Faculdade de Economia e Gestão da Universidade Católica de Moçambique (UCM) com o apoio do Centro de Investigação Santo Agostinho (CISA) da UCM, da FGS | Fundação Gonçalo da Silveira e do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP) , este Projeto implementa experiências de aprendizagem partilhadas que culminam na criação de ações comunitárias. 

Aproveitamos esta presença para conversar com Roberto e Geraldo, docentes da UCM e Investigadores do CISA. 

 

Talvez seja melhor começarmos com uma pequena apresentação… Podem falar-nos um pouco sobre vocês?

Roberto (dirt.): O meu nome é Roberto Mendes, nasci na província de Manica e depois fui estudar para a Beira, onde ainda permaneço. A minha licenciatura é em Engenharia e Desenvolvimento Rural e o meu mestrado é em Sistema de Informação Etnográfica. O meu primeiro trabalho foi o de docente, na Universidade Católica de Moçambique, onde já lecionei várias disciplinas ligadas ao ordenamento territorial e gestão ambiental. Já dou aulas na UCM há 4 anos e comecei a fazer investigação no ano passado, através da Irmã Ana Fontana (antiga coordenadora do CISA).

Geraldo (esq.): Chamo-me Geraldo e nasci na Beira, onde sempre passei o meu tempo. Fiz licenciatura em Ensino da Língua Portuguesa pela Universidade Pedagógica; especialização em Técnicas de Expressão e Literaturas Africanas pela Universidade de Aveiro; mestrado na área da Planificação e Desenvolvimento Regional e, recentemente, doutoramento em Humanidades. Estou na UCM já há 19 anos, onde sou docente, e em maio do ano passado, integrei o CISA.

Quais as linhas de investigação do CISA?

Geraldo: O CISA tem duas linhas de investigação muito importantes e nas quais o Reagir se enquadra muito bem: a doutrina social da igreja; e a cidadania e paz.  Esta integração faz-se na medida que as pessoas precisam de cuidar da sua Casa Comum e de tudo o que é criação divina, como diz o Papa Francisco. Neste sentido, o Reagir encaixa muito bem naquilo que são as prioridades de investigação do CISA, mas também na extensão universitária que o centro se propõe a fazer.

O que é a extensão universitária? E o que significa concretamente no terreno?

Geraldo: Consiste na integração da comunidade na construção de pensamento académico. Os estudantes interagindo com as suas comunidades desenvolvem as suas aprendizagens. É, ainda, outra oportunidade de a universidade implementar todas as aprendizagens (adquiridas no âmbito académico), isto é, desenvolver o seu direito de cidadania em prol do desenvolvimento das comunidades, respondendo às suas necessidades. Muitas vezes, o conhecimento que se gera dentro das universidades permanece distante das comunidades; o Projeto Reagir quer reverter esta tendência. 

Conseguem dar um exemplo de como uma prática, desenvolvida dentro das universidades, pode ser levada para benefício das comunidades?

Roberto: A extensão universitária é uma ponte que se estabelece entre as universidades e as comunidades que vivem nas suas proximidades. Muitas vezes, esta ponte não é feita através de uma comunicação direta. Com o Reagir nós abrimos a possibilidade de conhecer como as comunidades vivem, principalmente no contexto climático. Junto das comunidades vemos quais são as respectivas necessidades das pessoas e por via do conhecimento científico, procuramos intervir. Por isso, conseguimos uma espécie de simbiose entre o conhecimento que as comunidades têm, em relação às alterações climáticas, e o conhecimento que a universidade possui. Através desta relação, tentamos arranjar um equilíbrio entre estes saberes. Mas o mais interessante deste processo é que, além das comunidades, ainda conseguimos criar pontes com outras organizações que à partida não faziam parte do processo, mas acabámos por trabalhar com elas. Houve um ganho multidisciplinar através desta cadeia, desta “teia” de ação. Penso que as comunidades e as universidades ficaram a ganhar com este projeto. Às vezes o conhecimento que produzimos, enquanto académicos, fica fechado nas próprias academias e não tem uma concretização prática. Mas a extensão deste conhecimento com a realidade local, onde se vive, é transformadora

Quando falamos em realidades climáticas na zona da Beira, quais são as principais ameaças que vocês enfrentam?

Roberto: Por exemplo: inundações (que ocorrem ciclicamente); secas; ciclones e ventos fortes. Todas elas têm impactos e consequências muito graves. Por exemplo, eu trabalho com algumas comunidades e vejo que as florestas estão a ser devastadas, o que torna os solos mais pobres e a produção mais escassa. Isto tem consequências reais para as pessoas que dependem destas terras para sobreviver, nomeadamente na condição de vida cada vez mais desigual e mais crítica. É preciso intervir nesta situação, precisamos de fazer alguma coisa. 

Geraldo: Quero ainda acrescentar, que entre os problemas que já referimos, temos ainda o problema da erosão costeira. A cidade da Beira está abaixo do nível das águas do mar e isto tem uma implicação direta nestes fenómenos, principalmente nas cheias. Quando chove, o nível da água do mar aumenta e não temos como escoar a água de volta para o mar. A permanência de águas nas zonas residenciais leva a doenças como a cólera, a malária e a outras doenças diarreicas. Outra questão de preocupação é, também, a conversão das espécies, por isso o cuidado com os resíduos foi um fator que o Reagir veio responder, não conseguiu resolver mas foi um caminho de consciencialização da comunidade para a gestão sustentável dos resíduos. Por exemplo, a comunidade de Matacuane teve oportunidade de aprender sobre a separação dos resíduos. Agora já existe, por exemplo, comercialização de garrafas de plástico, já temos fábricas que as compram. O Reagir não respondeu apenas a problemas de alterações climáticas, mas também da sustentabilidade do uso dos recursos

Nas comunidades de Nhangau, por exemplo, a questão das secas, a pouca produtividade dos solos e a pouca diversidade do pescado, tem agudizado o aumento da pobreza. Por exemplo, através dos últimos ciclones – Idai, Eloíse, entre outros… – muitas casas, hospitais, escolas e machambas, ficaram destruídas. 

O projeto Reagir, neste contexto, é uma esperança, é um olhar de esperança, as comunidades olham para o plantio de árvores, como uma esperança de proteção, porque esta fruta pode ser para seu consumo e/ou para venda. E nós tivemos cuidado na escolha da espécie, escolhemos uma espécie especial, é uma mangueira especial, não é uma mangueira comum, é uma sem fios, não é fibrosa e muito suculenta. A comunidade olha para o plantio com muita esperança, até porque esta plantação foi feita nas escolas, no hospital, no Centro de Acomodação de Adultos, espaços públicos que permitem que qualquer pessoa possa fazer uso. 

Roberto: A ideia foi mesmo que ninguém se conseguisse apropriar daquele recurso, a nossa ideia era permitir que todas as pessoas tivessem acesso a estas árvores e a estes frutos, mas também que se responsabilizassem no sentido de garantirem o cuidado destas plantações.

O Projeto Reagir além do plantio de mangais e da consciencialização para a necessidade de um consumo de recursos mais sustentável, onde interveio mais? No que concerne à ação das comunidades…

Roberto: Tivemos a formação em mudas. Mudas é um viveiro para multiplicação de uma espécie específica de árvores, neste caso foram as mangueiras. Os jovens de Nhangau tiveram a oportunidade de ter uma formação, para aprenderem como podem misturar os solos e fazer o plantio. Primeiro, precisam de pegar na semente da mangueira e de a colocar em sacos de plástico, nas medidas certas para garantir o seu desenvolvimento. Posteriormente, as sementes brotam e as plantas crescem, temos o que chamamos de mudas, com plantas já mais ou menos desenvolvidas e que já podem ser plantadas nesses lugares.

 

Por último, quais os maiores desafios e as maiores dificuldades que o Reagir para as Alterações Climáticas enfrenta? O que poderá ser necessário para o futuro? O que poderá ser melhorado?

Geraldo: é um grande desafio para o Reagir divulgar mais as atividades que estamos a desenvolver, só assim conseguimos chegar a mais grupos, e consciencializar a comunidade no seu todo. Neste momento, o Reagir está presente em duas comunidades, mas há tantas outras que gostariam de ter as mesmas oportunidades. Este é o nosso primeiro grande desafio e o nosso grande desejo, também. Outro desafio que o Reagir tem enfrentado é a questão da consciencialização dos jovens (que são a camada “viva” da sociedade nesta matéria), em perceberem que o bem comum, depende de todos nós. 

Tem sido um desafio também, ajustar as estratégias do Reagir à realidade das comunidades. Atualmente estamos dentro das comunidades, a plantar árvores, estamos a criar viveiros para o plantio de novas árvores, mas se calhar podem existir outras formas de reagirmos, como por exemplo, criarmos novas oportunidades de empreendedorismo. Um dos grandes problemas que levam ao abate das árvores é o nível de pobreza, ou seja, a falta de recursos por parte das comunidades. As pessoas abatem as árvores porque não têm o que comer, não têm com o que cozinhar e precisam da lenha para fazerem as suas refeições. Na verdade, estamos a ir por um bom caminho (plantar árvores), mas não nos podemos esquecer que as árvores já existiam e que foram todas abatidas por causa das necessidades locais. 

 

Ou seja, há problemas estruturais que estão ligados a estas questões climáticas…

Exactamente… Há problemas estruturais muito profundos, a pobreza é um deles. A fome, o desemprego, são desafios muito complexos. A questão para nós é como podemos dinamizar as comunidades ao nível comercial, usando outros mecanismos de ação. Mais do que plantarmos árvores, ainda há desafios estruturais que devem ser vencidos. O grande alicerce do problema é a pobreza e a falta de recursos, por isso precisamos de criar iniciativas de empreendedorismo, que consigam criar mais produtividade e condições para as populações. Por exemplo, precisamos de criar parcerias para melhorar as vias de acesso e de escoamento dos produtos. Na Beira temos muito pescado, mas não temos condições para o transportar e para o conservar. As pessoas percorrem quase 30 km de mota para transportar o peixe e para vendê-lo. Há questões estruturais que desafiam o nosso projeto. 

Roberto: Tendo em conta a complexidade dos problemas, o Reagir não devia ser temporário, devia ser uma temática a ser trabalhada na educação para a cidadania, na educação transformadora. Mais do que falar sobre o clima, precisamos de práticas pedagógicas que permitam refletir sobre estas questões. Precisamos de uma atividade mais contínua.  

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